segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

o coração dos aflitos pipoca dentro do peito

Ontem, de volta à cidade do Rio de Janeiro, eu vi alguns blocos na rua. E era dia de vitória do Flamengo. A cidade estava radiante... em mim, vontade de dançar. Mas a mochila era grande, pesada.
Hoje cheguei à Terra da Garoa, da qual não senti muita saudade durante este mês de fevereiro, e fui logo me deparando com o metrô lotado, o Tietê enchendo e enchendo, a tarifa do ônibus intermunicipal que subiu (mais!) e todas as caras emburradas de sempre, porque, puxa, não sou dada a essas bobagens de caracterizar pessoas pelo local onde vivem, mas eu preciso dizer que no Rio os semblantes são mais serenos e amigos. Deve ser por causa do mar, só pode ser.

Bem, queridos, eu quero contar um pouquinho da experiência que vivi junto a alguns companheiros em assentamentos e acampamentos do MST no estado do Rio de Janeiro. Eu penso que escrever vai diminuir à beça o encantamento da vivência, mas um repasse é necessário. Vamos lá.

Durante o período preparatório do EIV tivemos grandes debates sobre o papel do Estado, democratização dos meios de comunicação, e, claro, Reforma Agrária. Dentre os palestrantes, Marcelo Freixo, Ivan Pinheiro e MC Leonardo! Tudo isso aconteceu no assentamento Vida Nova, em Barra do Piraí.
Cultivei muitas ideias com os amigos que fiz... em sua maioria, cariocas. De outros estados, haviam três meninas: eu, uma guria tri-legal do Rio Grande do Sul, a Pâmela, e uma moça do Mato Grosso, Michele. Conosco também estavam quatro argentinos: o Alejandro, a Barbara, o Santiago e o Augusto. Cantamos juntos algumas canções de Liberdade sobre la lucha campesina por America Latina.
Sem mais delongas, vamos à segunda parte do estágio: a vivência nos assentamentos e acampamentos. Vamos ao grade aprendizado, vamos à "moça maluquinha da cidade" que foi buscar respostas e só conseguiu mais inquietações. Que bom!
Chegamos ao acampamento Madre Cristina tarde da noite, e encontramos a Dona Alzelina tomado uma cervejinha. Antes de qualquer coisa, ela se adiantou: "cadê minha filha?". O jantar estava pronto, havia abóbora, arroz... Ela, com muita hospitalidade, falou que podíamos tomar banho, se a gente quisesse (eu e o Ton, meu companheiro de vivência em Madre Cristina). Banho de bacia! Num espaço sem porta! Como já sabia que não seriam férias, tratei de não me frustrar com nada. Tivemos água suja de lagartixa morta no poço, aranha caranguejeira na barraca, calor, muito calor, uma fossa sem o tratamento necessário, enfim. É importante mencionar os perrengues, já que lá pelo terceiro dia a Dona Alzelina me pediu: "quando chegar lá, mostra pra todo mundo como é o nosso sofrimento, o calor dessa barraca, a sujeira, que é pra ninguém mais chamar a gente de vagabundo baderneiro".
A Dona Alzelina, puxa, ela merecia um grande e belo livro sobre a sua história. Grande guerreira! Foi com ela, e não com Marx, que eu entendi no que se pauta a exploração do homem pelo homem. Toca sozinha a sua roça de abacaxi, aipim, milho... e sabe tudo. Há uma manifestação no Rio, lá vai ela com seu chapéu de palha! Quando eu fiquei doente, ela me fez um chá... a aranha apareceu, ela me colocou para dormir junto a ela em sua cama. A verdade é que eu me senti protegida como nunca antes havia me sentido. Companheira de verdade, porque comigo ela compartilhou o seu pão e os seus sonhos. Na hora de ir embora, eu queria falar uma porção de coisas, queria falar como era grande o meu afeto e minha admiração, como eu estava feliz e honrada, mas eu só consegui balbuciar "Deus abençoe a senhora, Deus abençoe a luta da senhora".
Eu poderia escrever sobre a organização de um acampamento do MST, sobre as reuniões e assembleias das quais participei, sobre o açude onde nadei, sobre os outros amigos que fiz por lá, sobre tudo que foi muito novo para mim, mas, velho, não dá. Um texto mais técnico vai ser publicado no boletim do MST lá do Rio, aí eu divulgo por aqui. Por agora, eu só quero falar do tormento aqui de dentro... Cheguei em casa e minha mãe comprou uma super ducha muito boa, mobiliou a sala, minha gaveta cheia de roupas limpinhas, tudo é tão confortável e injusto...

Chove em São Paulo e eu penso na seca que castiga a roça dos meus amigos. Estou atrasada para a Faculdade e fico pensando como vai ser difícil aguentar toda aquela galera que teoriza o tempo inteiro sobre as relações de produção e pensa que a revolução vai partir dos seus artigos científicos. E eu, o que vou fazer? O que importa é que agora eu começo a compreender, assim como as mulheres, homens e crianças de Madre Cristina, porque o sol se levanta vermelho.

6 comentários:

Daniela disse...

Com certeza uma experiência muito enriquecedora. Não sei como é estar nessa situação, talvez só na teoria. Mas seu texto sensibiliza demais.

Rodrigo Caetano Pinto disse...

A dona Alzelina é a verdadeira brasileira.

Unknown disse...

Lindo!

victor pompêo disse...

Eu ia dizer que vc fez falta e que era muito bom ter voltado... mas parece que tanto que vc fez tão mais bem onde estava que não vou ser tão egoísta de desejar que estivesse por aqui (:
(apesar de ainda acreditar que vc deveria ter levado um caderno e tal e ter escrito um texto por dia pra compensar o blog do tempo em que esteve fora ;) )

Vinícius Cássio disse...

Oi, Ana!

Fico muito feliz com o sucesso da viagem!

Vejo que seu sol está ainda mais forte para aquecer e brilhar por aqui!

Ótimo começo de ano!

Grande abraço

Pâmela Grassi disse...

"Foi com ela, e não com Marx, que eu entendi no que se pauta a exploração do homem pelo homem."

Gostei muito da história da tua vivência, Ana! A luta se aprende na resistência cotidiana!

Um beijão, Ana!