terça-feira, 15 de julho de 2014

A canção dos meninos de rua

Como se sabe, sou educadora social e trabalho com população em situação de rua. Adultos, homens em sua maioria. Ontem aconteceu um episódio interessante e eu gostaria de compartilhar com vocês.
Estávamos tomando café e um rapaz chegou cantando uma música. Um rap sobre violência e drogadição. Imediatamente os outros o acompanharam e, ao final, se olharam com identificação e um deles perguntou: "então você também foi menino de rua?". O que puxou a música afirmou e disse que aquela ele tinha aprendido na FEBEM. Eu perguntei quem era o compositor e eles me explicaram que ninguém tinha inventado a música, ela simplesmente se criou em meio aos meninos e meninas de rua, e que ela pertencia a quem a cantava. E depois me ensinaram outras. 
Eu pedi permissão para anotar algumas letras; elas são fortes e, a seu modo, educativas. De um jeito torto e forte cunho moral, alertam para o perigo das das drogas e falam do "mundo do crime":

No primeiro assalto você leva a sorte 
Escapa da polícia e também escapa da morte 
No segundo assalto as coisas não vão bem 
Escapa da polícia, mas cai dentro da FEBEM 
No terceiro assalto seu destino está selado 
Você pela polícia acaba sendo baleado 
Com uma bala na cabeça e outra no coração 
É mais um fim de um ladrão
E os que não morrem continuam a roubar
Para não morrer começam a matar 

A violência policial, absolutamente naturalizada, aparece como o fim esperado para um ladrão. E a única saída possível para a violência é a própria violência. Para não morrer, começam a matar: é tão verdadeiro que dói. No completo abandono em que vivem, essas crianças inventaram sua própria escola, seu próprio jeito de se colocar diante do mundo que só lembra que existem no momento em que roubam e matam. Como na célebre música do Planet Hemp, "tentando gritar do seu jeito infeliz que o país os deixou na desgraça". Enquanto a infância de tantos de nós foi embalada por cantigas de roda que falavam sobre peixinhos, caranguejos e anéis quebrados, esses meninos e meninas inventaram canções que retratam seus sofrimentos mais cotidianos, sua luta diária por sobrevivência, suas perdas e seus medos. E infância é época de bravura, mas também de medo. 
A sociedade deveria se chocar com o fato de existir a expressão "meninos de rua". Deveria se espantar mais ainda com o fato de eu trabalhar com homens de 23, 24, 25, 30, 35, 40 anos que cresceram e se criaram na rua. Seres humanos que nunca tiveram um lugar para chamar de casa. Ou tiveram, por um período frágil de tempo, e logo voltaram para a rua.
Viver na rua não é opção. Se esses sujeitos estão na rua, é porque todas as instituições falharam com eles, e a culpa também é nossa. Falhou a família, a escola, a igreja, fecharam-se todas as portas. E as crianças continuam a cantar suas canções, nos bueiros do centro, debaixo dos viadutos, na sua calçada... basta ter ouvidos para escutar.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

é nóis

As pessoas têm me perguntado por que eu troquei a escola pela rua. A resposta me parece tão cristalina que eu tenho dificuldade de verbalizar... sou assim mesmo. Então resolvi escrever sobre o meu novo trabalho e sobre tudo o que vier à cabeça agora; peço desculpas de antemão se ficar muito chato, pois faz muito tempo que não escrevo nada aqui e eu acho que nem me lembro mais como se escreve algo que não seja relatório de trabalho ou prova da faculdade. Fique à vontade para deixar de ler agora.
Eu estava gostando muito de trabalhar com as crianças. Mas não estava gostando de trabalhar em escola. Trabalhei por cinco meses em uma das escolas mais moderninhas do Brasil, super prafrentex mesmo, de esquerda, cheia das arte e tal, uma beleza de escola caríssima para onde as elites intelectuais paulistanas mandam seus filhos. Foi uma experiência bastante enriquecedora para mim, apesar das condições ruins de trabalho e do salário de estagiária, mas o que me fez sair de lá foi a constante cobrança de tirania que recaía sobre meus ombros. O tempo inteiro eu fui pressionada a ser mais "brava", como se a culpa de aquelas crianças ricas acharem que o mundo todo estava ali para servi-las fosse minha. Não deu. No começo deste ano, eu fui para uma escola mais tradicional, um colégio judaico. Lá, pasmem, a cobrança de tirania era muito menor, e eu finalmente comecei a me sentir uma profissional um pouco mais respeitável, que não precisava gritar feito louca para conseguir um pouco de atenção das crianças. Mas, assim como na escola precedente, a riqueza absurda daquelas crianças me congelava por dentro, sobretudo nos momentos em que elas externalizavam sua concepção de mundo daquele jeito puro que só as crianças sabem fazer. Lembro de uma vez em que conversava com um menino sobre uma atitude que ele teve em sala (jogou os cadernos da colega no chão e pisou em cima) e sobre a importância do respeito a todas as pessoas dentro da escola, aos funcionários, às professoras, à colega... ele me olhou furioso e disse que o pai dele não pagava a escola para ele ouvir bronca. Quando eu respondi que o dinheiro que o pai dele pagava não lhe dava o direito de humilhar as pessoas, ele respondeu: "então quanto que ele tem que pagar para eu ter esse direito?". Naturalmente, contei a esse menino a verdade inconveniente de que o dinheiro do pai dele não poderia comprar tudo, e a informação foi de tal modo chocante que seus olhos se encheram de lágrimas e ele ficou silencioso por um bom tempo.
Todas esses episódios foram me deixando triste com a escola, com suas relações sempre tão verticais, com a tirania presente em cada momento em que o limite entre o querer do aluno e a imposição da professora se tornava mais conflituoso. Aí eu fui me questionando se estava na profissão certa... porque não bastava gostar de criança, afinal, era preciso alguma coisa que eu não sabia onde encontrar, e se essa coisa fosse o "ficar brava" com as peraltices da criançada, certamente a professora Carol não tinha conserto.
Acontece que eu não tive tempo de dar mais uma chance para a escola. Fui chamada em um concurso prestado há mais de um ano, um concurso de educadora social, e assumi o cargo. Deixei a escola para as guerreiras com as quais tanto aprendi nesses meses de docência, que levam verdadeiro "jeito para a coisa" e conseguem se fazer ouvir apenas com um olhar. Minha gratidão a todas e que Deus abençoe sempre as crianças com as quais eu tive alegria de trabalhar; suas risadas escandalosas e suas declarações espontâneas de amor são bálsamo para minha vida inteira. 
Eu tinha vaga ideia do trabalho que desenvolveria como educadora social, mas algo me dizia que agora, sim, eu conseguiria trabalhar com um pouco mais de autonomia as minhas ideias sobre emancipação pela educação e trabalho com comunidades (desculpem se eu viajo, sonhar é fundamental). E eu não trabalharia para a elite!! Puxa vida, ganhar chocolate belga, suíço, Kopenhagen, perfume importado e tudo o mais era bacana, o salário também não era nada mal, mas a briga aqui dentro de mim estava grande demais. Sinceramente, tal qual uma panela de pressão defeituosa, eu era um colapso anunciado. 
Bom, então chegamos ao dia de hoje. Há mais ou menos um mês eu trabalho com pessoas que se encontram em situação de rua, desenvolvendo com elas oficinas, rodas de conversa, falando muito com elas sobre a vida e aprendendo imensamente. Eu tenho tanta coisa para contar, eu já cresci tanto. Juro pra vocês. Mesmo sendo só um mês. E eu confesso que tenho sofrido muito, também. Porque amo muito o ser humano, e não é fácil amar o ser humano nesse mundo de merda em que vivemos. Mas o importante é que sinto que meu trabalho tem sido um pouco útil e fico radiante quando algum dos meus novos amigos chega todo bonachão perguntando qual é a boa do dia, ou quando outro chega pela primeira vez, acanhado, e participa dos debates meio receoso, e participa no outro dia mais falante, e chama seus outros amigos, e vai com a gente assistir a um espetáculo de dança... mesmo sendo aquele ambiente tão opressor para ele, mesmo assim! Ele vai! A gente vai com ele. E é bonito quando tocam violão e lembram de histórias passadas, um até chorando (!) pois fazia seis anos que não colocava a mão em um violão, e tocar violão é reviver, e reviver dói, apesar de ser bom. Conversamos sobre temas polêmicos e eu percebo que a rua deixa as pessoas com a mente mais aberta que a escola. É meio louco. Falar de homofobia e violência contra a mulher rende debates muito enriquecedores que eu não tive espaço para fazer em sala de aula, infelizmente. Provavelmente porque agora trabalho com pessoas adultas. Provavelmente porque muitas delas sentem na pele o peso de ser travesti, o peso de ser mulher na rua e ter seu corpo violentado o tempo inteiro.
Tenho sido lá no trabalho, pelo menos neste primeiro momento, alguém com quem se pode desabafar. Não sei explicar. Talvez seja a minha idade, meu sincero interesse por suas histórias ou a dificuldade dos moradores em conceber o que faz uma educadora social (às vezes é obscuro até para mim), mas todos me falam de suas vidas com muita naturalidade. Da carga pesada que carregam desde muito pequenos. Das mães espancadas, dos pais estupradores, das mães que abandonaram, das irmãs violentadas, dos abrigos tenebrosos, da FEBEM, da cadeia, da polícia violenta, do frio da rua, da alegria da rua, do crack, da cocaína e do álcool, dos amantes... da solidão.
A autoestima das pessoas em situação de rua, não é difícil adivinhar, é bem baixa. Todos os dias um desconfiado vem me perguntar se eu estou gostando do trabalho ou se eu vou deixá-los. Ah, se ele soubesse o quanto é necessário para mim estar ali, trabalhar ali, aprender com eles. Aprender quando vejo o milagre da multiplicação das marmitex, 11 alimentam 30, aprender a compartilhar e a resistir. Aprender com esses corações que já sofreram muito mais que o meu e ainda têm sempre uma palavra de carinho, um desenho, um poema ou uma piada para me fazer sorrir, sonolenta e esperançosa que sou, às 8h da manhã.

domingo, 25 de agosto de 2013

crianças

Hoje eu tropecei e caí na rua e gritei muito de dor. "AAAI AAAI AAAI" até sentir que estava de bom tamanho. Simplesmente não pude evitar. O Rodrigo me afagou e eu fui me acalmando e silenciei. Foi a primeira vez que eu demonstrei em alto e bom som o que eu sentia, e eu acho que tenho aprendido isso com as crianças da escola onde estou trabalhando.

As crianças se machucam muito, o tempo todo, desesperadamente. E elas se comportam sempre mais ou menos do mesmo jeito: o choro (varia de escandaloso a contido), o pedido de colo (nem sempre verbalizado) e a calmaria. Cada criança é um oceano. E depois elas voltam a brincar com mais energia ainda.
Os pequenos adoram dançar. Nas aulas de música, o professor tocava "Chocolate" do Tim Maia e espontaneamente a sala se tornou um grande baile. Semana passada teve uma oficina de dança, e um dos meninos veio me mostrar tudo o que tinha aprendido. Que cena mais linda é uma criança dançando... vinte segundos de apresentação particular daquele menininho gravados para sempre dentro de mim.
As crianças buscam resolver suas questões, muitas vezes, no grito. Ou na agressão. Pequenos seres em estado de natureza! Daí a gente ajuda na resolução dos conflitos estimulando o diálogo: "diz pra ele o que você tá sentindo". Então elas dizem que nunca mais vão perdoar o fulano, "nem amanhã!" e, depois de alguns minutos, já estão lá se abraçando novamente... tudo muito rápido na vida delas...

Gosto de trabalhar com as crianças porque elas me fazem lembrar - para nunca mais esquecer - do ser humano melhor que eu já fui. De como eu já fui mais honesta comigo mesma e com os meus desejos e de como eu já fui menos egoísta e menos cheia de mágoas. Nesses 22 anos de vida aprendi muito, mas acho que desaprendi muito mais...

domingo, 28 de abril de 2013

Eparrei, Iansã


Na madrugada de hoje eu e o Rodrigo fomos assistir a Laranja Mecânica num cinema da Augusta e saímos de lá umas 2h30 da manhã. Já meio perturbada pelo filme, que eu assistira pela primeira vez, passei por uma experiência sem dúvidas trivial, mas extremamente forte. O Rodrigo falou que queria ver escrito o episódio pelo qual passamos, por isso sentei aqui para escrever sobre a travesti que nos abordou na travessa da Augusta com a Paulista e nos pediu um pacote de fraldas. 

Eu não gostei do filme, definitivamente. E não gostei de me lembrar de todos meus amigos e amigas e conhecidos que cultuam aquele personagem principal, o Alex. Na verdade acho que o que incomodou mesmo foi constatar que a sociedade atual produz muitos Alex e um eterno desejo de vingança na população, que no fundo é também meio Alex. Sei lá. Eu pensava na igreja, no Estado, conversava com o Rodrigo sobre essas coisas todas e aí ela apareceu e fez com que tudo se tornasse insignificante. Ah, medíocre classe média assistindo aos seus filmes-cabeça na rua Augusta e pensando que isso é a vida...
Eu não sei o nome dela; ela tem um cabelo enorme cheio de tranças e nos contou uma história um pouco cheia de detalhes demais para ser mentira. Sinceramente falando, e sem medo de ser tachada de boboca, eu sempre acredito nas histórias que me contam na rua. Tem um moço que pede dinheiro pra mim todo dia no ponto de ônibus e conta a mesma história, e eu sempre acredito. Acredito porque é plausível. Ele diz que seu barraco queimou no incêndio que teve na favela ali perto e ele perdeu tudo e seus filhos passam fome. Isso não me parece ficção científica. E de repente ele pode mesmo usar o dinheiro para comprar droga, porque a vida dele é uma droga e isso também não é ficção científica... 
Antes de dizer qualquer coisa, antes do “boa noite”, ela faz questão de repetir diversas vezes: “sou travesti e não sou ladrona”. Daí ela contou brevemente que veio da Bahia para se prostituir em São Paulo, mas não conseguiu. Disse que aqui queriam forçá-la a usar droga, coisa que ela não faria de jeito nenhum. Contou tudo num minuto, com aquela naturalidade triste de quem só conheceu a parte miserável da vida. Então ela explicou que não queria dinheiro e nem comida, mas um pacote de fraldas. “Pros meus irmãos gêmeos”. Comprei lá as fraldas, enquanto ela conversava com o Rodrigo sobre sua família evangélica em São Paulo, que só a deixava entrar em casa se ela trouxesse alguma coisa.
Mas por que a história me deixou triste, se é tão trivial? Talvez precisamente por isso. Antes de entrarmos na farmácia, ela me perguntou: “por que aqui em São Paulo todo mundo foge da gente?”. Eu falei que deve ser por causa do que as pessoas veem na televisão. Foi uma resposta estúpida, né? Eu devia era ter pedido desculpas em nome de toda população paulista. Depois que ela foi embora com as fraldas, continuamos, eu e Rodrigo, a descer a Augusta. E eu observava as pessoas dormindo nos cantos como se fossem pedras enquanto os adolescentes se matavam de beber e dar risada, festejando essa coisa maravilhosa que é a vida – pra quem não é uma pedra. E eu conversava com o Rodrigo sobre essa coisa bizarra que é gente ter medo de gente. As pessoas fugiam daquela travesti como se ela fosse um tigre (e eu usei essa metáfora com ele e depois sonhei com um tigre que falava e era muito sábio...).
Ao se despedir da gente, a travesti disse “Axé!”, ao que eu respondi “Axé!”, e então ela disse que era filha de Iansã, sem que ninguém perguntasse. Sem dúvidas foi uma informação relevante para mim, porque um dia uma amiga sonhou que eu estava flutuando no mar, mas não era eu, era a minha cabeça no corpo de Iansã, e eu achei aquele sonho muito legal J Comprei um livrinho sobre Iansã para saber mais sobre a Orixá e gostei muito do que li, sobre ela ser tão valente e ser a mãe do entardecer.
Axé, minha querida. Me perdoa por não ter perguntado o seu nome. Que Iansã te acompanhe sempre.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

tempo

Então me vi lavando a louça e o paninho da pia exatamente como a Cristina, a moça que cuidou de mim desde o dia em que eu nasci até eu fazer uns cinco anos. Durante longo tempo, tudo o que eu almejava era fazer tudo o que ela fazia, do jeito que ela fazia: do trabalho de artes que ela terminava tarde da noite até o bolinho de chuva das tardes frias em que a gente brincava de lanchonete. Sou hoje mais velha do que ela era na época em que cuidava de mim, e bem mais desajeitada, acredito. Mas já lavo a louça, escrevo carta de amor, passo roupa, descasco batatas, desenho coqueiros, faço feijão... tudo aquilo que eu achava tão bonito e não podia fazer... quem sabe eu até daria conta de cuidar de um bebê. A vida já me exigiu tanto.

Feliz ano novo e vida nova para quem aprendeu o significado de ser adulta. É ser tudo o que sonhou e se entristecer por perceber que a sublimação era aquela aparente incompletude, tão completa no seu desejo de ser. Porque se tornar gente grande é possível, embora pareça demorar uma eternidade, mas voltar a ser criança...

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Eu - Maiakóvski (1913)

Nas calçadas pisadas
de minha alma
passadas de loucos estalam
calcâneos de frases ásperas
Onde
forcas
esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
pescoços de torres
oblíquas

soluçando eu avanço por vias que se encruzilham
à vista
de cruci-
fixos
polícias

(tradução de Haroldo de Campos)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Minha humilde opinião sobre o segundo turno na cidade de São Paulo

Fico feliz por não ter que votar em São Paulo. Se o PSDB tem a política repressora encarnada pelo Telhada, "defensor dos direitos humanos" nas palavras de Serra, o PT é mandante de um dos grandes  genocídios da nossa história lá em terras amazônicas. Entre um e outro, a nossa vontade é de escolher a morte, ainda mais quando nos deparamos com um Maluf-rota-na-rua no pacote do PT paulistano.
Talvez eu possa opinar com um pouco mais de propriedade sobre a educação, que é a minha área... tenho algumas considerações a fazer. A crítica direitista ao Haddad sempre bate num dos pontos mais positivos de sua gestão como ministro: o ENEM. É um vestibular bem menos excludente e permite que uma porção de gente pobre frequente a universidade pública. Isso eu vi de perto. O ProUni, por sua vez, é um crime que só favorece os barões da educação, e eu já manifestei minha opinião sobre isso tantas vezes que eu nem vou ficar me repetindo... Serra, enfim, como sempre, tem como mote de suas promessas para a educação a escola para formar peão. Ele só fala disso, podem conferir. Para Serra, pobre não pode sequer sonhar em frequentar o ensino superior e pensar além da caixinha.
E a educação básica? Não nutro grandes expectativas sobre nenhum dos dois. Enquanto ministro, Haddad não teve um mínimo de atenção para com a educação dos pequenos ou daqueles com os quais temos uma dívida histórica: os adultos que não aprenderam a ler e escrever na idade dita adequada. O Brasil está longe de erradicar o analfabetismo. Serra, então... Serra e educação numa mesma frase é erro de concordância. O tucano é mestre em culpabilizar o professor e a "família desestruturada" pelo fracasso da escola pública. Para Serra, solução para professor que reivindica melhores condições de trabalho é tropa de choque. 
O que eu posso lembrar é que o PT tem a experiência bem-sucedida dos CEUs. São poucos e as vagas são limitadas, mas não deixam de ser uma boa experiência. Marta fez questão de levar piscina, aula de dança e teatro para quem nunca teve isso. E tal atitude é digna de nota. Tenho certeza que Haddad, se eleito, dará continuidade a tal política (populista? talvez... mas garante um pouco de cidadania a quem vive com o pé no esgoto).
Sábado passado eu estive em uma favela marcada para queimar. Mais dia, menos dia, seus moradores serão despejados em virtude da Copa. Não espero intervenção positiva nem de um e nem de outro candidato, visto que as empreiteiras financiam a campanha de ambos, mas creio que o PT será mais amigável na hora de negociar um plano alternativo com os moradores. Não porque o PT seja bonzinho, mas porque é o seu jeito de fazer política: garantindo a imagem de partido amigo do povo.
Dona Cleonice, moradora de tal favela, espancada pelo marido, sem comer há dois dias, com seu filho de 14 anos fora da escola, me perguntou se ela ainda era cidadã. "Eu voto como qualquer outro, não voto? Eu vou votar no Haddad". Eu não sabia o que dizer para a Dona Cleonice. Meu desencanto só me permitiu sorrir e abraçá-la, enquanto pensava em como pode ser perversa a democracia representativa.

domingo, 14 de outubro de 2012

A revolução das formiguinhas

Essa é uma história parcialmente baseada em fatos reais que eu escrevi para crianças. Como vocês poderão perceber, eu e minha mãe também somos personagens. Estava num caderninho, esquecida, mas achei legal compartilhar. Foi escrita depois da Páscoa, eu acho, e transcrevi sem fazer grandes modificações. Achei mais honesto. Qualquer semelhança com Orwell não é mera coincidência. Por ser pensada para crianças, minha pequena fábula tem parágrafos curtos, coisa que eu não gosto muito de fazer, e, como de costume, escrevi de maneira bastante simples. Espero sugestões :-)

CAPÍTULO PRIMEIRO: ESTOCANDO MANTEIGA E RAIVA

Foi um verão de muito trabalho para as formiguinhas, sobretudo durante as festas humanas de fim de ano.
Na casa de Carolina, a ceia era bastante modesta, mas a Dona Maria tinha grande coração e deixou sobre o balcão, pensando justamente nas formiguinhas, duas grandes castanhas. Só aquelas castanhas já garantiam, pelo menos, dois meses de estoque para o inverno.
E trabalharam, trabalharam e trabalharam, as pobres formiguinhas, enquanto a rainha gorda ficava só dando ordens. 
Chegou a Páscoa* e a família de Carolina foi viajar. 
As formiguinhas, trabalhadoras que eram, aproveitaram a deixa para investir nos ovos de chocolate e bombons que a família deixou em casa.
Passaram-se dois dias. As formiguinhas já tinham conseguido levar para o formigueiro metade de um grande bombom com recheio de avelã.
Então, aconteceu.
Sem que tivessem tempo de fazer nada para se defender, as formiguinhas viram muitas de suas companheiras serem esmagadas e afogadas... A família havia retornado e Carolina, menina gulosa, foi direto para a caixa de bombons onde as formiguinhas estavam trabalhando. Quase que por reflexo, devido ao susto, Carolina jogou na pia o bombom cheio de formiguinhas e lavou as suas mãos, também cheia de formiguinhas. 
Seres humanos têm uma mania curiosa de pensar que só eles sentem dor. Decerto sentiram muita dor, as formiguinhas assassinadas naquele fim de tarde, mas a dor delas não saiu no jornal. Exceto na Gazeta Formigueiro, numa chamada de vinte segundos. 
A morte das formiguinhas no trabalho é tão rotineira que se tornou... banal. A Formiga Rainha não paga às famílias das formiguinhas mortas um seguro de vida.
Carolina e sua mãe, no entanto, atormentadas pela culpa, deixaram sobre o balcão da cozinha um grande bombom recheado de avelã; Carolina até cogitou escrever "me perdoem" num cartão, mas pensou bem e viu que era uma ideia bastante estúpida. 
As formiguinhas ignoraram solenemente o bombom. Até hoje não se sabe se por orgulho ou por medo. Ninguém, obviamente, contou à Formiga Rainha sobre essa recusa.
Chegou o inverno e o formigueiro estava fartamente abastecido.
Às formiguinhas trabalhadoras foi distribuído farelo de pão, enquanto a Rainha e os demais membros da nobreza comiam manteiga, castanhas e chocolate.
"Isso definitivamente não está certo", pensava Eleonor, uma formiguinha cujo pai e irmã haviam morrido enquanto traziam alimento para o formigueiro.

CAPÍTULO SEGUNDO: ORGANIZAÇÃO

As formiguinhas trabalhadoras foram convocadas para uma reunião.
Eleonor falava sobre justiça e suas palavras soavam como música nos ouvidos cansados das formiguinhas trabalhadoras. Cada uma delas tinha pelo menos uma história de perda e tristeza para contar. A jornada de trabalho era muito perigosa: era preciso atravessar uma pia onde qualquer passo em falso significaria a morte por afogamento; havia uma grande aranha com uma grande teia; havia o perigo de se prender no melado; havia, enfim, os humanos, tão estabanados e grandes.
As formiguinhas montaram um documento em que exigiam melhores condições de trabalho e entregaram à Rainha. A principal reivindicação era o fim da jornada diurna de trabalho (momento em que os humanos estavam acordados).
A Formiga Rainha leu o documento. Não acreditou e leu de novo. Como assim? Ela estava realmente muito brava com toda aquela subversão. Mandou prender a Eleonor. Disse que aconteceria o mesmo com quem mais a desobedecesse. Distribuiu um pouquinho de manteiga entre as formiguinhas trabalhadoras, para que elas não a detestassem tanto. 
Mas, bem lá no fundo, as formiguinhas sabiam que aquilo tudo estava muito, mas muito errado...

CAPÍTULO TERCEIRO: REVOLUÇÃO

Já estava próxima a Primavera e o estoque das formiguinhas trabalhadoras foi se acabando. Mas ainda estava muito frio para sair em busca de mais. 
As formiguinhas se dirigiram, então, aos aposentos da Rainha. 
Elas já estavam bastante aborrecidas com aquela situação toda, nem era só a falta de comida, elas também não se conformavam com a prisão da Eleonor. 
A Formiga Rainha disse que nada ia fazer, e que elas não mais a incomodassem com essas histórias. Chamou os guardas. 
As formiguinhas trabalhadoras não podiam acreditar... Trabalharam tanto durante a Primavera, Verão e até no Outono, e agora a Rainha lhes negava um punhado de pão?
Era inadmissível.
Era insustentável.
Juntas foram todas as formiguinhas até a delegacia para soltar a Eleonor. Elas falaram e não foram ouvidas. Falaram mais uma vez e mais uma vez não foram ouvidas. Então gritaram. Gritaram e quebraram aquilo tudo. A Gazeta Formigueiro ia dizer que foi depredação do patrimônio público, mas elas não estavam nem aí. Libertaram a Eleonor. 
Foram todas juntas até os aposentos da Rainha e cortaram-lhe a cabeça. 
Dividiram todo o chocolate, a manteiga e as castanhas que a rainha gorda escondia para comer sozinha. Só precisaram trabalhar no verão. Agora, pela primeira vez, para elas mesmas.

*Festa humana em que se celebra o renascimento de alguém muito influente com distribuição de chocolates.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

sobre aeroportos

O aeroporto é o lugar mais triste do mundo. 
Hoje Ramon chegou de viagem e fomos lá buscá-lo. Tanta mala, tanto sonho, tanto souvenir, tanta fotografia, tantos amigos, tantas línguas; nossa, um aeroporto é cheio de tudo. Eu me sinto cheia de nada. Existe pouca coisa dentro de mim, além de espera.

Às vezes dói ficar aguardando o sinal esverdear para a vida que a gente sempre sonhou. Sensação de uns 90 anos de frustração nos meus ombros de 21...

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

tratamento pra solidão

Peguei costume de escrever num caderninho, se possível pela manhã, todos os meus sonhos. Bem rápido, antes de esquecer. Vou compartilhar um deles... 

Sonhei que estava com dor de cabeça e o Rodrigo me levava até um hospital. A gente ia correndo, meio flutuando, por uns caminhos desertos que eu nunca conheci. Então chegamos lá. 
Era um hospital com estrutura de hospital mesmo, normal, só que os pacientes eram bizarros: uma galera com o cérebro para fora da cabeça, com a pele toda vermelha, com umas feridas horríveis... Eu, intrigada com aquilo tudo e esperando meu atendimento, que nunca acontecia, perguntei à médica que por ali passava: "qual a especialidade desse hospital?". A médica tranquilamente respondeu: "Solidão. Aqui a gente trata da solidão."

Vou parar por aqui. O interessante é que no dia em que sonhei isso o meu vizinho se matou com um tiro na boca. Será que ele foi se tratar nesse hospital aí?